que a palavra que sai da minha boca, dos meus dedos, nao me traia,
mas me revele.
que eu não me encolha para caber nos olhos de ninguém,
nem me alongue demais até esquecer minha forma.
que a dor que eu carrego se transfome em gesto,
em arte, em cuidado, em passo.
que a beleza que duvido em mim encontre abrigo no meu olhar.
e que eu saiba enxergar. de verdade.
que a minha espiritualidade seja feita de silêncio que escuta,
e de palavras que não me prendem, mas me libertam.
que eu me perdoe pelas vezes em que fui generoso demais,
esperando amor onde havia só espelho vazio.
que a partir deste tempo,
eu me abrace como quem acolhe um filho perdido:
com firmeza, com ternura, com paciência.
que eu saiba:
minha voz é oração e feitiço.
minha escrita é ritual.
meu corpo é altar.
eu sou sagrado.
que eu não precise mais traduzir minha dor para ser entendido.
que eu não precise me desmontar para ser escolhido.
que o amor que eu desejo não me peça silêncio,
nem me cobre cura antes de me dar colo.
que eu aprenda a diferenciar presença de vigilância,
e carinho de controle.
que o meu coração, que já foi altar de tantos deuses ausentes,
seja agora santuário da minha própria existência.
que eu saiba:
afeto não é dívida.
amor não é prêmio.
e eu não preciso provar meu valor
com sacrifícios disfarçados de entrega.
que, quando alguém me amar,
esse alguém não se assuste com a minha luz,
nem tente apagar as minhas trevas.
e que, quando eu amar,
eu não me abandone no altar do outro.
que a minha mão saiba se estender sem se perder,
e que meu abraço não precise se encolher para caber.
que amar seja encontro,
e não prova.
que seja dança,
e não penitência.
e que, se um dia eu me esquecer de tudo isso,
que essa oração
que esse feitiço
me chame de volta com a voz do amor que mereço.
porque isso aqui
não é só escrever.
é construir um templo.
a partir das ruínas do que disseram de mim,
das promessas que quebrei comigo,
da fé que aprendi a dirigir a outros deuses,
que não eu.
um templo-rei.
sem coroas, tampouco tronos,
mas palavras.
palavras que tremem,
palavras que curam,
palavras que me criam,
mesmo quando estou perdido de mim.
eu sou a minha religião.
entrego minha devoção a mim.
com tropeço, erro e choro.
com fé e fervor.
sou meu sacerdote e meu desertor.
sou meu altar e meu exílio.
sou meu amor e meu algoz.
minha companhia.
meu milagre.
me traio com pensamentos.
me salvo com gestos.
me inscrevo, me descrevo, me escrevo.
quando ensino e questiono sobre sonhos.
no fundo sou o aluno.
as perguntas são para mim.
finjo. não de disfarce, mas de criação.
finjo e poetizo.
autopsicografo. autoetnografo.
invento para me conhecer.
por isso,
se um dia eu esquecer o caminho de volta pra mim,
que estas palavras acendam a trilha.
que elas me chamem pelo nome que só eu conheço.
não o nome que me deram,
mas o que eu descobri escrevendo.
que esta oração
que este feitiço
me sirvam de abrigo.
que seja meu espelho quando eu me estranhar,
meu fogo quando eu me calar,
meu canto quando eu apagar.
sou oferta.
sou altar.
eu sou templo.
sou rei.