quarta-feira, 30 de abril de 2025

morada

lembrar não é voltar.
lembrar é construir.

tijolo,
argamassa,
respiração.
tudo junto.

escrevo como quem finca
firme o corpo no próprio chão.

o texto é casa:
alguns cômodos rangem,
outros ainda nem têm porta.
há paredes que escondem,
e outras que escancaram.
observo.

memória não é santidade.
é obra em andamento.

rememoro
e restauro:
faço arqueologia dos afetos,
retiro a poeira dos restos,
com um pincel fino,
com fôlego.

o trauma, madeira bruta.
a palavra, meu pulso vivo.
o corpo, meu perfume.

escrevo assim:
com martelo,
com silêncio,

com suor,
com poeira nos olhos.

um tijolo.
de cada vez.
uma palavra.
de cada vez.

respiro o ar
e minha morada
tem cheiro de mim.

terça-feira, 29 de abril de 2025

silêncios

silêncios que cortam,
e guardam.

o nosso é dos dois.

não como um adeus repentino,
tampouco falta de despedida.
um fio se soltando devagar,
até só restar esse espaço.

nesse espaço selamos um pacto.
não de palavras, mas de respeito.
não de promessas, mas de memória.

carregamos
a lembrança do que fomos:
frágil, intacta, viva.

não é ausência.
não é esquecimento.
é amor que decidiu calar.

e, se um dia seus pensamentos cruzarem os meus,
mesmo que só por um instante,
saiba que
estou aqui,
no silêncio que nos liga.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

o vazio

acordo antes da manhã.
o vazio respira primeiro que eu.

não tem nome.
não tem rosto.
é presença.

um velho amigo
de quem fujo,
mas que sempre sabe o caminho até mim.

caminhamos lado a lado.
às vezes ele me assusta,
às vezes me embala.

o vazio não é tudo.
o momento não é tudo.
eu sou mais que o agora.

há em mim o medo.
há em mim o sonho.
há em mim o que ainda não sei dizer.

respiro.
deixo o vazio sentar ao meu lado.

não sou menos por senti-lo.
não sou menos por não preenchê-lo.

sou espaço.
sou caminho.
sou quem permanece.

domingo, 27 de abril de 2025

ligamentos

o costume molda.
o costume aperta.

ponta dos pés,
músculo contraído,
olhar curto.

um jeito de andar,
um jeito de sonhar,
um jeito de querer.

pequenos cortes,
para afrouxar.

palavra bisturi,
palavra navalha,
palavra sussurro.

saudade,
memória,
vontade.

respiro.
o corte que me solta.

mão firme na lâmina.
desenho caminhos no meu corpo.

sábado, 26 de abril de 2025

Bestiário

sussurro que respira fundo na sombra da ordem.
fascínio e medo,
pulso oculto no silêncio escuro
dos desejos proibidos.

ordem.
desejo abominável,
desejo perverso.

fetiche.
ódio que prende,
trai e revela.

incoerentes,
rugimos baixo
na sombra das palavras —
verdades que escorregam,
disfarces, silêncios,
perigos ocultos
em frases curtas,
em olhos baixos.

noites em que
caminhamos perdidos,
bestiário adentro,
floresta viva
de nós mesmos.

coragem
para ouvir
a respiração profunda
do animal enorme
que somos.

medo —
não da solidão,
mas do encontro,
do abraço que não solta,
do olhar que despe,
da mão que fica.

queremos,
fugimos,
amamos,
ferimos.

fera mansa,
beleza perigosa,
convite silencioso.

rugido quente,
esperando
quem se atreva
a ouvir.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

templo rei

que a palavra que sai da minha boca, dos meus dedos, nao me traia,
mas me revele.

que eu não me encolha para caber nos olhos de ninguém,
nem me alongue demais até esquecer minha forma.

que a dor que eu carrego se transfome em gesto,
em arte, em cuidado, em passo.

que a beleza que duvido em mim encontre abrigo no meu olhar.
e que eu saiba enxergar. de verdade.

que a minha espiritualidade seja feita de silêncio que escuta,
e de palavras que não me prendem, mas me libertam.

que eu me perdoe pelas vezes em que fui generoso demais,
esperando amor onde havia só espelho vazio.

que a partir deste tempo, 
eu me abrace como quem acolhe um filho perdido:
com firmeza, com ternura, com paciência.

que eu saiba:
minha voz é oração e feitiço.
minha escrita é ritual.
meu corpo é altar.
eu sou sagrado.

que eu não precise mais traduzir minha dor para ser entendido.
que eu não precise me desmontar para ser escolhido.

que o amor que eu desejo não me peça silêncio,
nem me cobre cura antes de me dar colo.

que eu aprenda a diferenciar presença de vigilância,
e carinho de controle.

que o meu coração, que já foi altar de tantos deuses ausentes,
seja agora santuário da minha própria existência.

que eu saiba:
afeto não é dívida.
amor não é prêmio.
e eu não preciso provar meu valor
com sacrifícios disfarçados de entrega.

que, quando alguém me amar,
esse alguém não se assuste com a minha luz,
nem tente apagar as minhas trevas.

e que, quando eu amar,
eu não me abandone no altar do outro.

que a minha mão saiba se estender sem se perder,
e que meu abraço não precise se encolher para caber.

que amar seja encontro,
e não prova.
que seja dança,
e não penitência.

e que, se um dia eu me esquecer de tudo isso,
que essa oração
que esse feitiço
me chame de volta com a voz do amor que mereço.

porque isso aqui
não é só escrever.
é construir um templo.

a partir das ruínas do que disseram de mim,
das promessas que quebrei comigo,
da fé que aprendi a dirigir a outros deuses,
que não eu.

um templo-rei.
sem coroas, tampouco tronos,
mas palavras.

palavras que tremem,
palavras que curam,
palavras que me criam,
mesmo quando estou perdido de mim.

eu sou a minha religião.

entrego minha devoção a mim.
com tropeço, erro e choro.
com fé e fervor.

sou meu sacerdote e meu desertor.
sou meu altar e meu exílio.
sou meu amor e meu algoz.
minha companhia.
meu milagre.

me traio com pensamentos.
me salvo com gestos.
me inscrevo, me descrevo, me escrevo.

quando ensino e questiono sobre sonhos.
no fundo sou o aluno.
as perguntas são para mim.

finjo. não de disfarce, mas de criação.
finjo e poetizo.
autopsicografo. autoetnografo.

invento para me conhecer.

por isso,
se um dia eu esquecer o caminho de volta pra mim,
que estas palavras acendam a trilha.

que elas me chamem pelo nome que só eu conheço.
não o nome que me deram,
mas o que eu descobri escrevendo.

que esta oração
que este feitiço
me sirvam de abrigo.
que seja meu espelho quando eu me estranhar,
meu fogo quando eu me calar,
meu canto quando eu apagar.

sou oferta.
sou altar.
eu sou templo.
sou rei.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Engolido

A gente pensa em palavras,
Mas sente sem saber dizer.

Ama e teme na mesma medida.
Sente e teima por não saber dizer.

Morre de medo de ser engolido.
Vive angustiado, sem fôlego, correndo pra se conhecer.

Mas o coração fica.

Fica engolido pelo amor, pela dor, pelo querer, pelo não-saber.
Derretendo em palavras o que o corpo nao consegue conter.