domingo, 4 de maio de 2025

autoetnógrafo


 

às vezes eu acho que estou me escrevendo
mas talvez eu só esteja me tentando

há palavras em mim que se recusam
riscam o papel sozinhas
fogem do olho, da boca, do nome
ficam ali, formando o vulto
de algo que eu sinto
mas não sei chamar

me olho como quem tenta ler
um idioma antigo
esquecido no fundo de mim
uma escrita densa
às vezes suave
mas quase sempre torta
desfeita de mim

há zonas em que não entro
não porque não queira
mas porque não sei como voltar

escrevo como quem tateia o corpo
à procura de uma cicatriz que ninguém vê
mas que nunca parou de doer

cada linha que traço
é um pedido de socorro
e uma promessa de reencontro
como se escrever fosse me puxar de volta
de onde eu me deixei

às vezes o que aparece é claro
e eu me reconheço
mas dura pouco
como a luz de um fósforo aceso no escuro

a maior parte de mim ainda é ilegível
me escrevo com mãos trêmulas
me leio com olhos cansados
me rasuro por medo de saber demais
e me escondo atrás do pouco que compreendo

isso que você vê
não é um retrato
é um rascunho
um corpo em tentativa
feito de palavras
metade minhas
metade indecifráveis

talvez nunca seja texto
talvez nunca me leia inteiro
mas sigo escrevendo
porque é o mais perto que já cheguei
de existir

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